1-Ícaro No 185, Janeiro 2000. (texto et fotos de Ricardo Beliel)
Eles estão com 71 anos e todas as madrugadas saem para pescar a 20 quilômetros da costa. Enfrentam ondas bravas, vento, chuva, sol forte que enfraquece a vista, mas jamais pensam em se aposentar: Zé Tiongo e Biel só se avexam um pouco é quando, na volta, atracam a jangada em meio aquele “cardume de gente” na praia de Morro Branco. Logo sobem para a vila incrustada lá em cima da falésia, onde tem até uma Praça das Mentiras. Hora de lembrar velhos causos, como as três vezes em que Tiongo teve a jangada atropelada por enormes navios cargueiros em alto-mar.

Na manhã seguinte, levadas pelo vento terral, lá vão as jangadas de novo para os locais marcados para a pesca – as marambaias. Cada mestre de jangada cuida de sua própria marambaia como um pomar de onde colhe frutos do mar. Nela deposita armadilhas para lagosta, os “manzuás”, a 90 braças de profundidade, enquanto, com linha, pesca bejupirás, guaiubas, ariacós, sapurunas e quantos peixes couberem no modestos 23 palmos da jangada. Dizem que, num aperto, quando falta isca para o peixe, velhos jangadeiros chegam a cortar com a taca uma porção do calcanhar. Sacrifício relativo para quem passa até quatro noites seguidas no mar, dormindo agarrado a um cabo para não cair na água. E, ainda por cima, piratas de praias distantes não raro vêm roubar as lagostas nos manzuás.
O vento nordeste traz de volta as jangadas, que avançam em ziguezague, como numa regata sem rumo. Na praia, os jangadeiros dividem entre si e com o dono da embarcação o saldo da pescaria. Ás vezes vendem um pouco para os marchantes dos frigoríficos. A palavra, derivada do francês marchand, faz lembrar do tempo em que os franceses pescadores de lagosta desembarcavam nas vilas atrás de mantimentos e moças sonhadoras. Na década de 60 o presidente João Goulart ordenou que a Marinha bombardeasse os pesqueiros franceses e quase nos arruma uma Malvinas com a França.
Chico Pires, aos 78 anos ainda o construtor de jangada mais requisitado da Fleixeiras, lembra quando velejava 170 quilômetros até Fortaleza para comprar alguma coisa. Hoje uma moderna estrada liga a capital ao vilarejo. E agora as jangadas já não são mais feitas com seis troncos de piúba e sim com ripas. Contudo, nem a transformação de Canoa Quebrada em ponto turísticos conseguiu mudar os hábitos do sexagenário Zé de Cum. Acompanhado do filho adotivo, Chico Rato, ele pesca nas marambaias mais distantes. Quando não avista mais nenhum ponto em terra firme, se orienta pela correnteza, pela coloração da água ou pelo sol e pelas estrelas. Os dois ficam até quatro dias apoitados (ancorados) em alto-mar à espreita de um grande peixe. Zé do Cum nunca esquece o mero de 270 quilos que pescou com linha, horas de resistência e muita paciência. Em terra, faz jangadas em miniatura para as crianças e conta segredos e batalhas de pescaria com a força e a precisão de um Hemingway em O velho e o Mar.

Entre dunas e falésias, Vila Estêvão, vizinha de Canoa Quebrada, parece perdida no tempo. As primeiras casas já foram engolidas pelo mar. Antônio Miolo, um dos moradores, conta que já tem “um bom feixe de anos”. Já passou dos 80. Quase cego, não pesca mais. Mas todas as madrugadas caminha até a beira da praia pelo puro prazer de ouvir as jangadas sendo empurradas para o mar sobre toras de carnaúba. Sua presença, dizem, garante boa pescaria. Sentadas na frente da casa, suas filhas, Morena e Pequena, trançam peças de tecido numa técnica do tempo dos mouros em Portugal, conhecida como labirinto. Levam meses para terminar um trabalho.
As lagostas só podem ser pescadas de maio a começo de dezembro. É quando, nos limites da vila, um palhoça atrai quem aprecia uma boa lagosta. O dono, Toinho Correia, brilha nas mais criativas formas de preparar a iguaria. Conta que nasceu logo depois de um banquete à base de lagosta que a mãe havia preparado e arremata, orgulhoso: “Nasci aprendido”.
2-Grands Reportages, Fevereiro 2004.
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