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Do journal "Estadão" (http://www.estadao.com.br) do Sábado, 15 de Setembro de 2001.

Quatro homens, uma jangada e um cineasta

Livro de Firmino Holanda esmiúça passagem de Orson Welles pelo Ceará

de SERGIO AUGUSTO

4 hommes et une jangada

Há exatamente 60 anos, quatro pescadores brasileiros se lançaram ao mar para uma viagem que entrou para a história dos jangadeiros cearenses, da navegação, do Estado Novo e do cinema. Tão arriscada foi ela, que até na imprensa americana ganhou espaço nobre. Num artigo intitulado Four Men on a Raft (Quatro Homens numa Jangada), a revista Time (8/12/1941) reproduziu toda a odisséia de Manoel Olímpio Meira (Jacaré), Raimundo Correia Lima (Tatá), Manuel Pereira da Silva (Mané Preto) e Jerônimo André de Souza (Mestre Jerônimo), que a bordo de uma jangada singraram os 2.381 km que separam Fortaleza do Rio de Janeiro, sem bússola ou carta náutica. Algo parecido ocorrera em 1923, quando quatro jangadas, sob o comando de Mestre Filó, viajaram do Rio Grande Norte até o Rio de Janeiro, para reanimar os festejos do Centenário da Independência. Os jangadeiros potiguares foram brindados, na época, com um poema de Catulo da Paixão Cearense, mas seu feito não chegou à imprensa estrangeira nem virou filme.


Jacaré, Tatá, Mané Preto e Mestre Jerônimo partiram da antiga Praia do Peixe (hoje, Iracema), em 14 de setembro de 1941, e chegaram ao seu destino dois meses depois. Não participavam de um rali ou de um enduro patrioteiro, mas de um reide com finalidade política. Os jangadeiros queriam chamar a atenção do País e do governo para o estado de abandono em que viviam os 35 mil pescadores do Ceará. Morando em toscas palhoças, nem do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Marítimos eles recebiam ajuda. O presidente da República precisava saber daquilo. Ficou sabendo.


Em carro aberto - Não tínhamos bem um presidente, mas um ditador, Getúlio Vargas, e no Ceará, como nos demais Estados, um interventor. Em 16 de novembro, o ditador recebeu os quatro jangadeiros, que pouco antes haviam sido acolhidos apoteoticamente pela população carioca e conduzidos em carro aberto até o Palácio do Catete, enquanto a jangada que os trouxera - batizada São Pedro, o santo padroeiro dos navegantes - era exposta na Cinelândia, entre as estátuas de Floriano Peixoto e Paulo de Frontin. Líder do grupo, Jacaré, 38 anos, falou pelos quatro. "Voltem tranqüilos", consolou-os Getúlio. "O governo saberá ampará-los e dar-lhes justiça."


O único amparo providenciado pelo governo, contudo, foi mantê-los sob estrita vigilância de agentes do Dops, nas duas semanas que passaram na capital federal, recebendo homenagens de autoridades e entidades civis. Qualquer aproximação deles com os comunistas poderia ser fatal, ponderou o fascistóide ministro do Trabalho, fazendo de conta que ainda havia comunistas fora das prisões do Estado Novo.


Acompanhando a viagem dos jangadeiros desde o início, o repórter dos Associados Edmar Morel com eles retornaria ao Ceará num bimotor da NAB (Navegação Aérea Brasileira), para completar sua reportagem. A chegada a Fortaleza, em 1.º de dezembro, após sete horas de vôo, foi uma apoteose ainda maior que a do Rio. Um cortejo de 150 automóveis seguiu os heróis da terra do aeródromo do Alto da Balança ao Jangada Clube, na Praia de Iracema, onde foram recebidos, entre outros, pelo interventor Menezes Pimentel. A façanha de Jacaré, Tatá, Mané Preto e Mestre Jerônimo já entrara para a história dos jangadeiros cearense, da navegação e do Estado Novo. Só faltava entrar para a história do cinema.


Estimulado pelo auê em torno do reide, Ruy Santos, que apesar de comunista faturava algum dirigindo documentários para o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), filmara em novembro um curta, A Jangada, em cima da canção praieira de Dorival Caymmi, A Jangada Voltou Só. A odisséia da São Pedro, contudo, estava condenada a entrar para a história do cinema americsano.


Na primeira semana de dezembro de 1941, folheando a Time, Orson Welles tomou conhecimento da proeza de Jacaré & cia., e teve um estalo: ali estava o segundo episódio brasileiro de It's All True, o filme pan-americano que o governo Roosevelt há pouco lhe encomendara. Além da viagem, parcialmente reconstituída com seus protagonistas originais, Four Men on a Raft contaria a história de um casamento prematuramente desfeito pelas ondas do mar, como aquele descrito em A Jangada Voltou Só. Mas sem esta ou qualquer outra canção de Caymmi. A princípio, a música do segundo episódio brasileiro de It's All True seria composta por Villa-Lobos. A do primeiro, tendo como pano de fundo o carnaval carioca, seria de Herivelto Martins, Ataulfo Alves, Mario Lago e outros mestres do samba.


Muito já se escreveu sobre a passagem de Welles pelo Rio e as dificuldades que ele enfrentou para rodar o malfadado It's All True. Pouca atenção, no entanto, se deu às semanas que o cineasta passou no Ceará, filmando a primeira parte do episódio dos jangadeiros. A temporada carioca, além de quatro meses mais longa que a cearense, foi infinitamente mais rica em peripécias - algumas até hoje à espera de relatos mais substanciosos e confiáveis -, mas não seria justo reduzir o folclore de Quatro Homens e Uma Jangada ao traumatizante desaparecimento de Jacaré, por acaso ocorrido numa praia carioca. Welles passou um mês em Fortaleza (com baldeações e rápidas incursões a São Luís, Recife e Salvador) quando estava na pior, quase ao deus-dará, encurralado por Hollywood, o Departamento de Estado norte-americano e a ditadura getulista. De mais a mais, as imagens de Quatro Homens e Uma Jangada que lograram ser recuperadas superam em quantidade e organicidade as do episódio carioca.


Preenchendo a lacuna - O crítico cearense Firmino Holanda acaba de preencher essa lacuna com um livro, Orson Welles no Ceará, que talvez conte mesmo tudo aquilo que precisamos saber sobre a fase nordestina de It's All True, muito superficialmente abordada nas reminiscências de Edmar Morel (Histórias de Um Repórter, Record, 1999). Por sua intimidade com o reide, Morel, que além do mais fora criado nas praias de Fortaleza, fez parte da equipe do cineasta, como pesquisador, conselheiro e contato com os pescadores, ganhando US$ 200 por semana, uma nota naquela época.


Welles chegou ao Brasil em 8 de fevereiro de 1942, filmou o carnaval carioca, e em 8 de março fez uma viagem de reconhecimento a Fortaleza. Lá chegou num vôo especial da NAB (Navegação Aérea Brasileira) e foi recebido como "um Napoleão do cinema". A imprensa local, arremedando a carioca, não economizou turíbulo nem incenso. "Um rapaz modesto e simples, de aspecto bonachão e risonho, atencioso e camarada (...) o tipo consumado do rapaz ianque de sua idade, sem protocolo e sem reservas, fazendo-se logo amigo de todos" - proclamou o diário O Povo. Arregimentados por Fernando Pinto, presidente do Jangada Clube e o mais boêmio, folgazão e altruísta empresário da cidade, mais de cem jangadeiros foram recepcionar o cineasta no aeródromo local. Em poucas horas, Welles participou de uma regata de nove jangadas (foi a bordo da Urano, ao lado de Mestre Jerônimo), assistiu a um espetáculo de coco-maracatu e jantou no Jangada, na companhia do cônsul dos EUA em Fortaleza, cujo sobrenome, curiosamente, era Rambo.


Hospedada no Excelsior Hotel, no centro da cidade, a entourage It's All True (Welles levou seis acompanhantes, entre os quais Morel, seu fiel assistente Richard Wilson e a tradutora Matilde Kastrup) já embarcava, na manhã seguinte, para São Luís, onde algumas tomadas foram feitas, e de lá, no mesmo dia, para o Rio, via Recife. Dois meses mais tarde, Jacaré e seus três companheiros foram trazidos de avião até o Rio e hospedados no hotel Copacabana Palace. Por 500 mil réis semanais, participariam de algumas cenas do episódio carnavalesco, ao lado de Grande Otelo, rodariam no aeroporto a despedida do Rio e reconstituiriam, numa praia da Barra da Tijuca, a triunfal chegada da jangada São Pedro à Baía de Guanabara. Nessa ordem.
Várias tomadas da chegada ao Rio chegaram a ser feitas, no dia 19, mas uma manobra infeliz da lancha que rebocava a jangada a teria virado, jogando ao mar agitado os seus quatro tripulantes. Três se salvaram. O corpo de Jacaré desapareceu e nunca foi encontrado.


Acidente provocado? - À tona, várias paranóias. José Aírton, morador da Praia de Iracema e amigo da vítima, levantou logo a hipótese de acidente provocado. E deu suas razões: Jacaré falava demais e reivindicava muito. Sua morte, dizem, foi comemorada com champanhe pela Federação de Pesca do Ceará. Josefina de Castro, a viúva, passou cinco anos acreditando que o marido fora levado pelos americanos para os EUA, até que em 1947, cansada de esperá-lo todos os dias na beira da praia, morreu. Raimundo, um dos 11 filhos de Jacaré, até hoje acredita que seu pai foi assassinado. Nenhum parente ou amigo da vítima culpou Welles pela tragédia. Mas parte da imprensa carioca não se mostrou tão compreensiva. Especialmente naquelas publicações mais suscetíveis a pressões do governo - àquela altura indignado com o excesso de negros, favelas e pobres filmados pelo cineasta - It's All True passou a ser sistematicamente hostilizado e sua equipe exortada a pegar o primeiro avião de volta para Hollywood.


Ainda assim, Welles foi em frente. As coações, quase sempre veladas, da ditadura getulista o perturbavam bem menos que o assédio crescente da RKO e do governo americano, que o acusavam de gastar dinheiro a rodo, filmar coisas sem nexo e repetidas e ser generoso além da conta com os jangadeiros. Na primeira semana de junho, a RKO deu um basta no projeto, cortou o crédito do cineasta e mandou toda a equipe voltar para casa. Welles conseguiu convencer o chefão do estúdio a prolongar sua estada no Brasil por mais um mês, o tempo de que necessitava para filmar, em Fortaleza, toda a primeira parte de Quatro Homens e Uma Jangada. Em troca, trabalharia com uma equipe mínima, levaria apenas 40 mil pés de negativo, filmaria tudo em preto-e-branco e sem iluminação artificial, com uma câmera Mitchell silenciosa, emprestada pela brasileira Cinédia.


Welles e sua miniequipe desembarcaram na Base Aérea de Fortaleza às 15h30 do dia 13 de junho. Apesar do que ocorrera com Jacaré, foram acolhidos com enorme simpatia. Para assegurar maior tranqüilidade aos trabalhos, estabeleceram-se nas areias do Mucuripe e ali rodaram a história de amor do jovem pescador (José Sobrinho) com uma bela morena (Francisca Moreira da Silva, então com 13 anos), o casamento dos dois, a morte do jangadeiro e seu enterro nas dunas, a conseqüente revolta dos pescadores pelas suas precárias condições de vida e a decisão política do reide até o Rio de Janeiro. No papel de Jacaré, puseram seu irmão Isidro.


Em Fortaleza, Welles revelou-se um homem radicalmente diferente do garotão farrista e mulherengo que os cariocas conheceram. Não deixou de ir a festas (chegou a marcar quadrilha num folguedo junino), nem de freqüentar o Jangada Clube, mas parou de beber e deu um duro danado nas seis semanas que lá passou, correndo contra o relógio e fazendo malabarismos com o orçamento. Sempre alegre, passou a viver com os pescadores, que o tratavam de "galegão legal" e admiravam o seu desprendimento de confortos materiais e sofisticações culinárias. Dormia numa cabana rústica, mal protegida dos raios solares, e à noite, depois de encarar um portentoso prato de feijão com arroz e peixe, recolhia-se para escrever madrugada adentro. Em 14 de julho, encerrada a faina em Fortaleza, a equipe de It's All True rumou para o Recife, seguindo três dias depois para Salvador, chegando ao Rio no dia 22. Dez dias mais tarde, Welles deixaria o Brasil, para nunca mais voltar.


Firmino Holanda não se limita a fazer um relato das andanças de Welles pelo Ceará - vez por outra enriquecido com fatos pitorescos, como a barracão do cineasta na porta do Cine Diogo, que não permitia a entrada de homens em mangas de camisa -, arriscando-se a ilações e interpretações que envolvem outras obras do cineasta (sobretudo A Dama de Xangai) e até uma experiência do russo Einsenstein, Que Viva México!, em muitos aspectos parecida com o também inacabado It's All True.


Outros casos - Holanda tampouco se esqueceu de Jangada, o longa que o brasileiro Raul Roulien rodou no litoral cearense em 1949, e O Canto do Mar, dirigido em 1954 por Alberto Cavalcanti. O que eles têm de comum com It's All True, além do mar e dos pescadores? Bem, Roulien perdeu todo o negativo de Jangada num incêndio, em 1951. Temeroso de desafiar as bruxas, Cavalcanti, que pretendia filmar O Canto do Mar em Fortaleza, transferiu sua equipe para o litoral pernambucano. Teria Netuno ou Iemanjá enfeitiçado os mares bravios do Ceará? Welles não chegou a aventar tal hipótese, mas na década de 50, num programa da BBC, levantou a suspeita de seu "filme brasileiro" ter sido vítima de uma mandinga. Que outra coisa podia ser a enorme agulha que ele um dia achou atravessada no roteiro de It's All True?

Orson Welles no Ceará, de Firmino Holanda (Edições Demócrito Rocha, 205 págs., R$ 28), pode ser comprado pelo telefone (0--85) 255-6270 ou por fax (0--85) 255-6276